Não
poucas vezes, surgem dúvidas em relação a feriados, festas e comemorações
religiosas no meio evangélico; isso se deve frequentemente a grande quantidade
de credos e religiões coexistindo em território nacional. O encontro de duas
tradições religiosas distintas nos impele a um questionamento sobre a nossa
própria prática de fé, bem como aos nossos próprios costumes religiosos.
Normalmente, há duas abordagens
quando nos deparamos com o conflito mencionado: a primeira, e mais simples, é a
rejeição intransigente. A segunda, e muitas vezes mais letal para a fé, é a
aceitação incondicional. A tradição metodista, formada nas tensões de visões
político-sociais radicais do século XVIII, sempre buscou o equilíbrio. No mais perfeito
exemplo da máxima aristotélica do “caminho do meio”, Wesley buscava (quando
possível) conciliar visões opostas sem perder de vista a ortodoxia.
Um
desses questionamentos que nos é muitas vezes apresentado é em relação ao
feriado de Corpus Christi (do latim, Corpo de Cristo). Esta data não se
referente a nenhuma passagem bíblica; na verdade, sua origem data do século
XIII, o ápice da Idade Média, por conta das visões de Juliana de Mont
Cornillon. O então papa Urbano IV com a bula “Transiturus de hoc mundo” no dia
11 de Agosto de 1264 instituiu a celebração de Corpus Christi na primeira
quinta-feira depois da oitava de Pentecostes a fim de reservar um dia no ano
para a veneração do Santo Sacramento da Ceia. Assim, a resposta para a pergunta
do título é curta e simples: não.
Aqui podemos analisar a veneração
do Sacramento por dois pontos de vista. O primeiro é a veneração ela mesma do
corpo de Cristo no ato da ceia. Ela é justificada pela doutrina da
transubstanciação. Não por acaso, o papa Urbano IV pediu a Santo Tomás de
Aquino para compor o ofício da celebração em 12 de agosto de 1264. Santo Tomás
traduziu essa doutrina em termos aristotélicos. Em resumo pão e vinho sofrem
uma alteração de substância (essência) sem que ocorra uma alteração no acidente
(características externas, aparências e afins) dos elementos da ceia. O
metodismo rejeitou a doutrina da transubstanciação desde os tempos de Wesley.
No 18º artigo de religião, Wesley escreve:
“A
transubstanciação ou a mudança de substância do pão e do vinho na Ceia do
Senhor não se pode provar pelas Santas Escrituras, e é contrária às suas
terminantes palavras; destrói a natureza de um sacramento e tem dado motivo de
muitas superstições. O corpo de Cristo é dado, recebido e comido na ceia,
somente de modo espiritual. O meio pelo qual é recebido e comido o corpo de
Cristo, na ceia, é a fé. O sacramento da Ceia do Senhor não era, por ordenança
de Cristo, custodiado, levado em procissão, elevado nem adorado.”
Essa doutrina da presença real de
Cristo no sacramento é de fato muito antiga. Ela se opôs muitas vezes contra as
heresias docetistas e gnósticas que negavam a encarnação do Verbo. Uma reação a
essas doutrinas foi o próprio Credo Niceno. No entanto, a má interpretação das
palavras de Cristo levou muitos grupos na história a fugirem a fé ortodoxa no
extremo oposto. Um exemplo disso foi o Apolinarismo no século IV. Apolinário
apresenta uma nova cristologia a fim de eliminar todo e qualquer traço de
dualismo na pessoa de Jesus. Para ele, em Cristo havia uma unidade substancial
entre o Verbo de Deus e sua carne. A consequência disso foi a doutrina da
deificação do crente no momento da Ceia. O cristão se tornava divino ao ingerir
o corpo de Cristo no Sacramento.
O segundo ponto diz respeito a
natureza do Sacramento. Lutero em sua obra “Do Cativeiro Babilônico da Igreja”
faz a distinção entre Sacramento e Promessa (Palavra). Sacramento é um rito
onde se tem uma promessa associada. A promessa dá validade ao sacramento, por
isso, não há motivo para sua veneração. Para Wesley, a Ceia do Senhor era um
dos principais meios de graça, juntamente com a oração e a leitura da Bíblia,
conforme diz:
“Os
principais desses meios são as orações, [...] pesquisando as Escrituras [...] e
receber a Ceia do Senhor, comer o pão e beber o vinho na lembrança Dele: E
esses eu acredito são ordenado de Deus, como os canais comuns da transmissão de
sua graça para as almas dos homens.”
No
entanto, a veneração do sacramento transformou o “meio” pelo qual Deus
transforma a vida do crente em um fim em si. Como diz Wesley: “no processo do
tempo, quando 'o amor de muitos se tornou frio'; alguns começaram a confundir
os meios pelos fins”.
Dessa forma, ao analisar a
história e as implicações da celebração de Corpus Christi, vemos que o
metodista não deve guardar esta data. No entanto, muitos de nós metodistas nos
afastamos do real entendimento do Santo Sacramento da Ceia, esquecendo da
Promessa e da Graça que por meio dele Deus opera. Deve-se sempre lembrar sobre
o sacrifício de Cristo, sendo o seu memorial a Ceia do Senhor.