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sábado, 19 de fevereiro de 2011

SEM AVISO

Este é um pequeno trecho do livro que indico ao lado, A DÁDIVA DA DOR. Se eu pudesse, daria um exemplar para cada médico, pois já se esqueceram de que a medicina é um dom a favor da humanidade e deve tratar o paciente como um todo e não como um mecânico.
O problema específico de Tania ocorre raramente, mas condições como lepra, diabetes, alcoolismo, esclerose múltipla, distúrbios nervosos e danos a coluna espinhal podem também resultar num estado de insensibilidade à dor estranhamente perigoso. De modo irônico, enquanto a maioria de nós procura farmacêuticos e médicos em busca de alívio para a dor, essas pessoas vivem constante perigo pela ausência dela.
Aprendi sobre ausência da dor quando trabalhava com lepra, uma doença que aflige mais de doze milhões de pessoas em todo o mundo. A lepra há muito provoca um medo que chega às raias da histeria, principalmente por causa das terríveis deformações que pode provocar se não for tratada. O nariz dos pacientes leprosos encolhe, as orelhas incham, e com o passar do tempo eles perdem os dedos e juntas, a seguir as mãos e os pés. Muitos também chegam a ficar cegos.
Depois de trabalhar algum tempo com pacientes na Índia, comecei a questionar a suposição clínica de que a lepra causava diretamente essa desfiguração. A carne dos pacientes simplesmente apodrecia? Ou seus problemas, como os de Tania, podiam ser remetidos à causa subjacente da insensibilidade à dor? Os pacientes de lepra talvez estivessem destruindo a si próprios sem saber, pela simples razão de lhes faltar igualmente um sistema que os avisasse do perigo. Ainda pesquisando esta teoria, visitei um grande leprosário na Nova Guiné, onde observei duas cenas terríveis que nunca mais esqueci.

Uma mulher num povoado próximo ao leprosário estava assando batatas num braseiro de carvão. Ela espetou um abatata com uma vareta afiada e a colocou sobre o fogo, girando lentamente a vareta entre os dedos como se fosse um espeto de churrasco. A batata caiu do espeto e fiquei observando enquanto ela tentava espetá-la sem conseguir, cada estocada fazendo a batata afundar mais na brasa. A mulher finalmente encolheu os ombros e olhou para o velho agachado a poucos passos dali. Ao ver o gesto, evidentemente sabendo o que era esperado dele, o homem arrastou-se até o fogo, enfiou a mão nas brasas, afastando os carvões ardentes para recuperar a batata, e depois voltou ao seu lugar.
Como cirurgião especializado em mãos humanas, fiquei estarrecido. Tudo acontecera depressa demais para que pudesse interferir, mas fui examinar imediatamente a mão do velho. Ele não tinha mais dedos, só tocos retorcidos cobertos de chagas supuradas e cicatrizes de antigos ferimentos. Aquela não era certamente a primeira vez que enfiara a mão no fogo. Aconselhei-o sobre a necessidade de cuidar de suas mãos, mas sua reação apática deu-me pouca confiança em que ouvira o que eu disse.

Alguns dias depois, conduzi um uma clínica de grupo num leprosário vizinho. Minha visita fora anunciada com antecedência, e ma hora marcada o administrador tocou uma campainha para chamar os pacientes. Fiquei com o resto do pessoal num pátio aberto, e no momento em que a campainha tocou, uma multidão de pessoas surgiu das cabanas individuais e das enfermarias em forma de barracas, vindo em nossa direção.
Um paciente jovem e animado chamou a minha atenção enquanto atravessava de muletas e com dificuldade o pátio, mantendo a perna esquerda enfaixada longe do chão. Embora fizesse o máximo para desajeitadamente apressar-se, os pacientes mais ágeis logo o deixaram para trás. Enquanto eu observava, o rapaz colocou as muletas debaixo do braço e começou a correr com os dois pés, um tanto inclinado e acenando violentamente para chamar a nossa atenção. Ele chegou ofegante quase na frente dos demais, e apoiou-se nas muletas com um sorriso de triunfo no rosto.
Pelo andar dele pude ver, no entanto, que algo estava muito errado. Andando em sua direção, percebi que as ataduras estavam ensopadas de sangue e seu pé esquerdo balançava livremente de um lado para o outro. Ao forçar um tornozelo já deslocado na corrida, ele pusera peso demais sobre o osso da perna e a pele arrebentara. Ele estava andando sobre a parte final da tíbia e com cada passo o osso nu tocava o solo. Os enfermeiros o repreenderam severamente, mas ele parecia orgulhoso de si mesmo por ter corrido tão depressa. Ajoelhei-me diante dele e descobri que pedrinhas e gravetos haviam penetrado até a cavidade óssea, o tutano, a medula do osso. Não tive escolha senão amputar a perna abaixo do joelho.

Essas duas cenas me perseguiram por muito tempo. Quando fecho os olhos, ainda posso ver duas expressões faciais, a indiferença cansada do velho que tirou a batata do fogo, a alegria efervescente do jovem que correu pelo pátio. Eventualmente, um perdeu a mão, o outro a perna; eles tinham em comum uma despreocupação absoluta com a autodestruição.
Por fim, Brand mostra que a dor e o sofrimento estão diretamente ligados à mente e é ali que se potencializa ou diminui.

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